sexta-feira, julho 27

Terras extremas...

Chris McCandless foi morrer no Alaska. Em maio de 1990, depois de ter conseguido o bacharelado em Direito com notas excelentes, abandonou a universidade, doou suas poupanças – cerca de cinco mil contos – a uma instituição de caridade que combate a fome nos Estados Unidos, desfez-se do velho Datsun de segunda mão com todos os haveres lá dentro num deserto do Arizona, queimou os últimos dólares que tinha na carteira e deixou-se arrastar pela sua sede de aventura, de vida ao ar livre e de horizontes sem fim.

Durante dois anos errou sem destino pela América do Norte, trabalhou esporadicamente, conheceu pessoas e atravessou paisagens. Saltou para comboios de mercadorias, pediu carona, andou a pé, dormiu ao relento, passou fome. Leu Jack London, Henri Thoreau, Tolstoi, e sublinhou as frases que não podia ignorar: “A verdadeira colheita da minha vida cotidiana é algo inatingível e indescritível como as cores da madrugada e do crepúsculo” num livro de Thoreau: “Sentia em mim um excesso de energia que não cabia numa vida tranqüila” num livro de Tosltoi.

No final de abriu de 1992 pegou a última carona da sua vida. Encontrava-se em Fairbanks, no Alaska, e pediu para ser deixado na entrada do Delani National Park. Explicou ao condutor que queria enfiar-se na floresta e viver alguns meses em contato total com a Natureza. Agradeceu a carona e desapareceu na taipa coberta de neve. O corpo foi encontrado no princípio de setembro, dentro da carcaça de um ônibus que nos anos 60 servia de abrigo a mineiros que exploravam o interior do parque. Numa corda ligada à porta ondulava uma bandeira improvisada com um tecido de cor vermelha. No vidro um bilhete manuscrito explicava: SOS, preciso de ajuda. Estou doente, quase a morrer, e não tenho forças para retornar a pé. Pelo amor de Deus, suplico, fiquem à minha espera. Ando por perto a recolher bagas e regresso no fim da tarde. Obrigado. Chris McCandless. Agosto?

Não existe muita gente como Chris. Gente que decide virar as costas à vida em sociedade e adotar um sistema de valores em que conforto material está no escalão mais baixo, em que não é reconhecida qualquer autoridade ao senso comum, em que dinheiro não tem lugar. A beleza de cada momento, a intensidade das emoções, o contato direto com a Natureza, o desassossego e a viagem conta mais.

Chris não era surfista, mas ao ler a história da sua vida “Into the Wild – 1996” que o jornalista Jon Krakauer reconstruiu através dos diários, fotografias, várias cartas e entrevista junto aos amigos e a família, fico pensando que Chris gostaria de ter tido a oportunidade de se relacionar com o mar da forma que só a um surfista é permitida.

A curta existência de Chris é vagamente paralela à do seu compratiota Mike Boyum. Tal qual como Chris, Mike tinha “um excesso de energia que não cabia numa vida tranqüila”. Abandonou a universidade para viajar pelo sul do Pacífico e aprendeu a surfar na Indonésia no início dos anos 70. Amigo de Gerry Lopez e de Peter McCabe, foi ele que inventou o surf camp, na onda que tinha descoberto com o seu irmão Bill – a onda de Gland. Mike na realidade chamava ao campo de “surf monastery”, e propunha a todos os que ali passaram nesses primeiros anos uma experiência quase mística. Tal como Chris, Mike desdenhava o conforto material e seguia uma alimentação baseada quase que exclusivamente em arroz integral. Nadava diariamente horas seguidas, corria quilômetros a fio e recorria com freqüência à pratica do jejum para limpar o “bad karma” do corpo – mantendo-se por vezes várias semanas sem ingerir um único alimento.

Tentou financiar as suas viagens com o tráfico de entorpecentes e as coisas não correram bem. Esteve preso dois anos, foi ameaçado de morte por outros traficantes, envolveu a própria família nos seus problemas e acabou por fugir para a Ásia em 1988. Nas Filipinas – dizendo chamar-se Max Walker, a identidade secreta do “Fantasma” dos quadrinhos – descobriu a onda Cloud 9, instalou-se em frente do recife, na selva que os habitantes acreditavam ser assombrada e construiu uma cabana com troncos e folhas de palmeira. Mike escreveu uma carta à irmã que projetava um novo “surf monastery” e uma vida nova em Cloud 9.

Iniciou um jejum, como purificação e ponto de partida. Escreveu um diário ao longo do jejum, nadava nas águas translúcidas do recife, atravessava longos períodos de êxtase, sentia o sol acariciar-lhe a fraqueza do corpo. Pediu a um missionário da Ilha de Siargao que lhe trouxesse alimentos ao fim de quarenta e três dias, tempo que se propunha manter-se sem comer. Morreu antes, provavelmente no dia 40 ou 41.

Chris e Mike quiseram tocar o extremo, em plena comunhão com a Natureza, longe da civilização que tanto desprezaram. A história da sua vida, e da sua morte, é uma janela aberta sobre horizontes que a nossa existência pacata e sempre igual não pode sequer imaginar. Não é para aqui chamada a minha opinião sobre gente como Chris e Mike, mas podemos, e devemos, pôr-nos uma pergunta particularmente incómoda ao tomar conhecimento de personagens deste calibre: quem é que no fim morre mais feliz – eles ou nós? Provavelmente nunca saberemos...

Crônica de Gonçalo Cadilhe do livro: No princípio estava o mar...

Um comentário:

Surfe Catarinense disse...

Muito bom o livro do Krakauer, ele mesmo um meio eremita - em outro livro, de histórias curtas, ele conta a vez que escalou sozinho um pico de gelo no Alaska, quase morreu, coisa de maluco. O Krakauer não surfa, mas é (ou era, não sei que idade tem) alpinista, esporte que tem suas afinidades com pegar onda - se faz sozinho, com poucos equipamentos, integrado à natureza. Ele tem bons livros - como o "No ar rarefeito", que narra aquela temporada no Everest em que morreram oito ou nove alpinistas.