Dois surfistas se encontram por acaso num esfumaçado pub de Koh Samui, uma pequena ilha da costa leste da Tailândia, e começam a conversar. Roger é um australiano apaixonado por aventuras, que saiu de Perth aos 17 anos e nunca mais voltou. Aproveitou o tempo na estrada para surfar algumas das melhores ondas do mundo e fazer uma pequena fortuna comercializando, na Califórnia, objetos exóticos do Oriente. Amigo de Tito Rosemberg, ajudou a descobrir boas direitas no Marrocos e no Senegal, mas o tesouro de sua vida ainda estava para ser desenterrado.
Capitão Mike é um rico cigano dos mares. Dono de um veleiro de 42 pés, gastava a herança deixada pelos pais cruzando oceanos e surfando ondas alucinantes, junto com sua mulher. É o típico americano fanfarrão, adepto de um bom copo de cerveja e de boas risadas. Dez cervejas Bitangs mais tarde, o capitão, já enrolando a língua, enveredou por um assunto que iria mudar o rumo das destinações surfísticas.
– Deixa eu te fazer uma pergunta, Roger. Qual é a melhor esquerda do mundo?
– Ora, capitão, essa é fácil, Pipeline sem dúvida!
– Pois é isso que você pensa?
Eu já surfei sozinho, a melhor esquerda do mundo! A bancada de coral é de deixar um cara louco. Longas linhas, lisas, grandes e tubos enormes. Eu não agüentava mais guardar esse segredo. Eu tinha de contar para alguém. Mas se você acha que eu vou te dizer onde é que fica essa onda, pode ir tirando o cavalinho da chuva.
Mas a cerveja acabou falando mais alto. E o capitão Mike, depois do que parecia ser o milésimo copo, acabou entregando o pico, segundo antes de embarcar no tranqüilo mundo dos sonhos que só bêbados de carteirinha conhecem. Então essa fantástica onda fica em Fiji, pensou Roger, já na manhã seguinte. Mas onde fica Fiji? São mais de 300 ilhas, quase todas com acesso dificílimo.
Foi ai que ele avistou Marion, a mulher do capitão, andando pelo ancouradoro. Roger estava com o mapa em mãos e só teve que estendê-lo.
– Bom dia Marion. Mike chegou com vida no barco na noite passada?
– Já me acostumei com as bebedeiras dele. E você, vai para onde depois de Koh Samui?
– Pra te falar a verdade, tava pensando nisso mesmo. Acho que vou dar uma chegada em Fiji. O Mike me falou de uma certa esquerda ontem á noite, mas estávamos tão bêbados que já não consigo lembrar onde exatamente era. Será que você poderia apontar para mim no mapa? Não tô a fim de acordar o capitão...
Quarenta e oito horas depois, Roger aterrizou em Suva, capital de Fiji, na Ilha Viti Levu. Munido de um detalhado mapa do arquipélago, uma mochila e duas pranchas, o australiano deu o segundo passo em direção da maior aventura da sua vida. Logo no aeroporto percebeu que os fijianos eram o dobro do tamanho dos balineses e ainda maiores do que os taitianos e havaianos, seus primos polinésios. “Espero nunca me meter em encrenca com essa galera. Eles não parecem amigáveis”, pensou Roger, enquanto retirava as pranchas da esteira.
E não são mesmo. Ao contrário do resto do terceiro mundo, os habitantes de Fiji são muito orgulhosos para lamber as botas de turistas e não levam desaforo para casa em hipótese alguma. Eles são enormes e tem cara e fama de mau. Mas como Roger era cobra criada na estrada, ignorou as vibrações negativas e se concentrou em tentar chegar em Lautoka. Depois de seguir a desgastante rotina de táxis, ônibus, balsas e barcos, consegui chegar em Lautoka, ilha vizinha de Tavarua, o último elo com a civilização. Como sempre acontece nessas roubadas, Roger fez amizade com o motorista do único táxi da vila, que o levou até o chefe do povoado para que pedisse permissão para desembarcar em Tavarua. O chefe se chamava Rabuka e já estava ficando desconfiado com tanto interesse numa ilhota que sempre estivera abandonada e que não passava de ninho de cobras do mar. Já era o segundo branco que pedia permissão pra chegar em Tavarua em menos de um ano. Algo devia estar acontecendo. Pouco importa, contando que paguem, concluiu Rabuka.
Roger, prevenido, quis acertar uma taxa que lhe desse o dinheiro de volta caso tudo não passasse de obra da imaginação do capitão Mike. O chefe foi irredutível, e exigiu mil dólares adiantados para que Roger pudesse pisar na Ilha, caso lhe agradasse, poderia ficar quanto tempo quisesse. A brincadeira já havia ido longe demais e, Roger não tinha ido parar em Lautoka, milhares de quilômetros de seu ponto de partida, para ser barrado no baile. Mesmo contrariado, resolveu pagar para ver.
Orientado pelo taxista, um sujeito dono do sorriso mais amarelo de toda Polinésia, Roger comprou mantimentos para si e para dois fijianos, que deveriam levá-lo até Tavarua e ajudá-lo a construir o bangalô de madeira, onde iria viver. Roger chegou em Tavarua e não acreditou. Esquerdas perfeitas rolavam em duas bancadas. Uma bem em frente da areia e outra lá fora em alto-mar. O capitão Mike realmente sabia do que estava falando. Aquilo era um tesouro, uma descoberta que, pelo menos aparentemente, apenas os dois dividiam.
Os swells eram fartos e o surfe ajudava a passar os dias. Os dois fijianos eram jovens e fortes, e não tinham o mesmo ardor de Roger pelas ondas. Eram também extremamente fechados e agressivos, e faziam questão de deixar o australiano de fora das conversas. Roger, por sua vez, tentando conquistar a amizade deles, se ofereceu para ajudar nos trabalhos da ilha, de construir o bangalô, cavar o reservatório de água, a fossa e etc... Eles aceitavam passivamente a ajuda e instruíram Roger nas tarefas do dia. Roger começou ajudando entre caídas, mas logo os fijianos lhe cobraram mais empenho e mais horas de trabalho. Roger não gostou e o clima ficou pesado.
Era a deixa que os fijianos precisavam para instaurar uma nova ordem na ilha – e que só teria fim com a fuga de Roger. Ele foi feito escravo e suas coisas, inclusive as pranchas foram confiscadas pelos dois. Roger só conseguiu sair dessa enrrascada quando, depois de vinte dias de trabalhos forçados, avistou um veleiro e, aproveitando-se de um momento em que a dupla havia ido para o outro lado da ilha, roubou uma das pranchas e remou desesperado, gritando por ajuda.
Acompanhados pelos tripulantes do barco, que possuíam armas, Roger desembarcou em Tavarua pela última vez e recolheu seus pertences. Quando chegou a Califórnia, a noticia de sua aventura já tinha corrido meio mundo. As revistas Surfer e Surfing voaram para entrevistá-lo, mas Roger desmentiu qualquer insinuação de ondas perfeitas em Fiji e afirmou ter sido lenda de marinheiro a prisão em Tavarua. Ele tinha uma ótima razão para não contar a verdade. O tesouro estava lá quebrando perfeito nesse exato momento, e seria seu se quisesse. Roger tinha certeza de que os dois fijianos agiram sem o consentimento de Rabuka. Sabia também que tinha todas as chances do mundo em arrendar Tavarua, pois o chefe tinha uma queda toda especial por notas verdes. Notas que ele tinha. Bastava vender sua parte na loja de móveis orientais em Santa Bárbara e transformar Tavarua num hotel de surfe nos moldes do recém inaugurado Grajagan Surf- Camp, no sudeste de Java. Seria um sucesso, ele não tinha a menor dúvida. Roger só precisava se manter de bico calado e de um tempo para organizar as finanças.
Um dia, porém, Dave, seu melhor amigo, o encostou na parede e disparou: Eu sei que você está mentindo. “Te conheço o suficiente pra saber quando você está falando a verdade. Aquilo tudo aconteceu mesmo, não é!?”. Roger não resistiu ao apelo e contou, de uma só vez, tudo o que havia vivido dois meses atrás. Falou do encontro com o capitão em Koh Samui, de Rubaka, dos fijianos, das ondas, da prisão, da fuga e dos planos do surf-camp.
Contou tudo, e o relato emocionado só terminou no dia seguinte, com o nascer do sol. Dave não conseguia acreditar que algo assim pudesse ter acontecido. Não em pleno século XX. Os dois se abraçaram e se despediram. Roger acenou para Dave, reiterou seu pedido de segredo e sentiu-se aliviado por ter finalmente contado uma coisa tão forte quanto a sua descoberta de Tavarua. Dave afinal era seu melhor amigo.
Seis meses se passaram e Roger ainda estava às voltas com a papelada da venda da sua parte na sociedade. Estranhava a ausência prolongada de Dave que havia ido visitar uma antiga namorada na Itália. Mas as coisas nem sempre são como parecem. E Roger foi obrigado a aprender da maneira mais difícil: sendo traído.
Ao folhear a Surfer, Roger custou a acreditar que estivesse lendo num pequeno anúncio de ¼ de página uma oferta de estadia no recém inaugurado surf-camp da Ilha de Tavarua – a sua Tavarua. Foi só aí que ele entendeu a razão do sumiço de Dave. Ligou pro telefone anunciado e a voz de Dave soou do outro lado da linha. Desligou. Sua mente explodindo de indignação e ódio. Entrou no carro e dirigiu sem parar até San Diego, onde ficava o escritório. Dave não estava no momento, mas se ele quisesse poderia esperar. Roger esperou. Quando Dave entrou na sala e os dois se encontraram, os olhos revelaram dor pela amizade perdida. Roger levantou e, sem dizer uma palavra, deu uma porrada em Dave, que se esparramou por cima da mesa da secretária. Dave nada disse. O pessoal do escritório não ofereceu qualquer tipo de resistência na saída de Roger. Eles haviam captado a profundidade da desavença. Roger bateu a porta do carro e rumou novamente para Morro Bay, onde morava. “A vida não passava de um jogo”, pensou. E era ele o perdedor.
Sua vida nunca mais foi a mesma depois disso. Roger vendeu tudo e saiu pelo mundo à procura de novas ilhas e paraísos perdidos, mas não obteve sucesso. Hoje ele vive no sul da Suécia, numa pequena e gelada vila que em nada se parece com uma ilha no Pacifico Sul e não surfa mais. Certas coisas só acontecem uma vez na vida!
Texto: Fred'Orey
Reprodução Revista Fluir, ano 9 nº7 – edição 81.
4 comentários:
Maurio, nao sei se é só no meu computador, mas as imagens do cabeçalho e algumas outras do Alohapaziada não estão carregando.
Falou,
Gustavo
Valeu Gustavo!
Realmente, o cabeçalho e os outros itens - links, não estão carregando. Será arrumado nas próximas horas.
Máurio
Máurio, to aqui de novo nesse post. É aquele lance de que surfista não lê...quando vi o tamanho do texto, não me animei. Hoje, domingão, em SP, longe das ondas, encarei Tavarua, e fiquei surpreso, não conhecia o artigo nem a história, que coisa doida, cara! Parece que um filme vai passando na cabeça com a narrativa. A moral é a de não confiar nem na própria sombra! Esse Dave aí vai pagar em algum momento da existência dele, qualquer um que conhecer essa história automaticamente roga uma praga pra ele!
Falou!
Gustavo
Domingão em Sampa! Aproveita e dá uma passadinha no Museu da Lingua Portuguesa. É animal!! Bom retorno...
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